'Estrada desaparece': o relato de lideranças de comunidades afetadas por chuvas na maior região indígena do Brasil
02/08/2025
(Foto: Reprodução) Chuvas isolam comunidades e alagam plantações na região mais indígena do Brasil
“Quando a cheia vem, leva tudo. As pontes somem. A estrada desaparece. E a nossa produção fica encalhada”. O relato é de Abel Barbosa, de 59 anos, tuxaua da comunidade Flexal, em Uiramutã. O município proporcionalmente mais indígena do Brasil sofre fortes com chuvas e intensas cheias dos rios, que isolam comunidades inteiras, dificultando o acesso a serviços básicos como educação, saúde e transporte de alimentos.
Nessa sexta-feira (1º), o governo Federal reconheceu a situação de emergência nacional em Uiramutã, no Norte de Roraima por conta das cheias e das chuvas.
🔎 Localizado na tríplice fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana, Uiramutã fica há 280 km da capital Boa Vista, e é o 10º mais populoso entre os 15 municípios do estado.
🛣️ A principal rodovia que leva a Uiramutã é a RR-171. Essa rodovia conecta o município à BR-433 e, consequentemente, à capital Boa Vista e outras regiões do estado. Fora da BR-174, o trajeto de Boa Vista até o município não tem asfalto, apenas estrada de barro, com buracos e lamas.
🔎 A região tem uma área territorial de 8.113,598 km². É lá onde está a maior parte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ao todo, são 222 comunidades indígenas em Uiramutã. 96,60% da população se autodeclara indígena, ou seja dos 13.751 habitantes, 13.283 habitantes são indígenas.
Do total de moradores, 60% da população está isolada por conta das chuvas. A prefeitura do município chegou a decretar, no dia 11 de julho, situação de emergência quando o número de isolamentos chegou a 8.334 pessoas. Mas, de acordo com a Defesa Civil Estadual, todas as comunidades da região estão sofrendo com as cheias.
"Todas as comunidades indígenas da região estão passando por dificuldades. É uma área de acesso extremo, com estradas ruins, serras, pontes precárias, igarapés. Quando chove lá, a situação se agrava muito. Toda aquela região está em situação crítica", disse o tenente-coronel Leonardo Menezes.
Sede da cidade de Uiramutã, cidade proporcionalmente mais indígena do Brasil, onde nenhuma rua é asfaltada
Josivan Antelo/Rede Amazônica
O g1 procurou a prefeitura de Uiramutã, questionou se há o interesse em se posicionar, mas não foi respondido até a última atualização desta reportagem.
Pontes de 'madeira, machado e coragem'
Estrada alagada na entrada da comunidade Flexal, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Na comunidade Flexal, a 28 km da sede de Uiramutã, os 485 indígenas macuxi produzem feijão e mandioca (ou maniva, como é chamada pelos indígenas) para produção de farinha. A cada novo ciclo de chuvas e cheia dos rios no município, a história se repete na comunidade: pontes arrastadas pelas águas, estradas tomadas por lama, erosão e plantações ameaçadas.
Para chegar até a comunidade é necessário colocar carros e caminhões dentro de igarapés -- já que não há mais pontes no trajeto e as que existem foram construídas pela própria comunidade. Apenas caminhonetes chegam no local.
Restos de ponte destruída pela água no caminho para a comunidade Flexal, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
No início do mês, a comunidade realizou um mutirão para tapar os buracos na estrada por conta própria (veja no vídeo acima). Para o tuxaua de Flexal, a comunidade está refém das cheias dos rios e das chuvas.
“Quando a cheia vem, leva tudo. As pontes somem. A estrada desaparece. E a nossa produção fica encalhada”, resume.
Abel Barbosa, tuxaua da comunidade Flexal, em frente ao que estrou da plantação comunitária de mandioca
Caíque Rodrigues/g1 RR
A produção de feijão na comunidade diminuiu, hoje está focada na farinha, por conta da dificuldade em transportar itens mais perecíveis -- como o feijão. A farinha está guardada, esperando as chuvas diminuírem para que seja transportada e vendida na sede da cidade.
Neste ano, na roça comunitária, os indígenas produziram 88 sacas e esperam chegar a 150. Mas com as estradas em péssimas condições, a possibilidade de perder tudo é real.
“A farinha pode estragar. A gente tem medo de perder o trabalho de meses porque o caminhão não chega. E quando vamos atrás da prefeitura, a resposta é sempre a mesma: quebrou o caminhão, quebrou a caçamba, estada tá ruim. E nada é feito”.
Farinha feita na comunidade Flexal não consegue ser vendida e fica estocada em depósitos da comunidade
Caíque Rodrigues/g1 RR
"Foi na força do povo. Nos juntamos e reconstruímos a ponte com madeira, machado e coragem. A estrada estava cortando pneu de carro, de moto. Ninguém chegava, ninguém saía", afirmou o tuxaua.
'Aqui, tudo é feito a pé'
Indígenas improvisam ponte para carro passar por igarapé na comunidade Barro, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Poucos metros da comunidade Flexal, há a comunidade Barro, que com 126 indígenas macuxi passam por problemas parecidos. A ponte que cortava o Igarapé Pequeno, que leva até o local, foi destruída pelas águas em 2024 e nunca foi reconstruída. O indígenas improvisaram uma nova ponte com ripas de madeira.
A rotina de crianças da comunidade foi interrompida pela falta da ponte. Sem transporte escolar, nem estrutura adequada, os estudantes estão há meses sem conseguir frequentar as aulas.
“Tem estudante que vinha da outra comunidade pra estudar no Flexal, mas agora não estão mais vindo. A ponte caiu e não tem como atravessar”, conta o tuxaua Ivanicio Barbosa, de 40 anos, liderança da comunidade Barro.
Ivanicio Barbosa, tuxaua da comunidade Barro, em frente ao local onde costumava ser a ponte da comunidade
Caíque Rodrigues/g1 RR
Ao todo, 60 estudantes vivem em Barro. Segundo o tuxaua, mesmo sem estrutura, a comunidade já reconstruiu a ponte quatro vezes com as próprias mãos. A comunidade chegou a solicitar da prefeitura de Uiramutã um barco para levar os estudantes até a escola, mas o pedido nunca foi atendido.
"A gente mesmo, com recurso do próprio bolso, vem tentando arrumar as pontes, tudo manualmente. A gente arruma, o carro volta a passar, mas logo o rio leva tudo de novo. E quem sofre são os alunos”, desabafou o tuxaua.
Local onde costumava ficar a ponte da comunidade Barro, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Em caso de emergência médica, a comunidade também não conta com transporte. “É só a pé mesmo. Se alguém passa mal, é andando que levamos. Aqui, tudo é feito a pé”, afirma Ivanicio.
'A água passou e levou tudo'
Comunidade Makuken, em assembleia para discutir maneiras de lidar com as cheias, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Outra comunidade que sofre as consequências do período chuvoso do município é Makuken, que fica 17,7 km de distância da sede de Uiramutã. Lá vivem 172 indígenas do povo macuxi e a situação este ano foi ainda mais grave. A cheia levou quase toda a plantação comunitária de mandioca.
Quando o g1 foi até o local, a comunidade fazia uma assembleia que discutia soluções para remediar os estragos causados pela água. O tuxaua Cláudio Sousa Pereira, de 50 anos, comandava a reunião.
“Quando veio essa enchente, a água passou e levou tudo. A maniva ficou no fundo da água, morreu. E é com essa maniva que a gente faz a farinha. Isso deixou a gente muito preocupado, porque daqui pra frente vai faltar farinha. A gente depende disso”, contou ao g1.
Cláudio Sousa Pereira, tuxaua Makukem, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Segundo ele, a comunidade "se ajuda como pode", dividindo o pouco que restou de alimento. Mas o cenário é incerto: o estoque de farinha pode durar até o fim do ano, depois, não se sabe.
“Se eu tenho um pouco de farinha, divido. Se outro tem feijão, reparte com a gente. Assim a gente vive. Mas agora vai ser difícil, porque todo mundo perdeu produção”, disse.
A esperança de recuperação é lenta. A mandioca, por exemplo, demora até dois anos para ser colhida. Com isso, a segurança alimentar da comunidade está em risco.
Local onde costumava ficar a plantação de mandioca da comunidade Makuken, tomada por capins após inundação
Caíque Rodrigues/g1 RR
“A produção rápida seria o feijão, mas agora já não dá mais tempo. E aqui ninguém tem bomba d’água, não tem irrigação. A gente só planta quando o inverno chega”, explicou.
“A produção rápida seria o feijão, mas agora já não dá mais tempo. E aqui ninguém tem bomba d’água, não tem irrigação. A gente só planta quando o inverno chega”, explicou.
“Isso me preocupa muito. Se nossos filhos não estudarem, quem perde são eles. Mesmo que falte merenda, a gente tenta mandar pelo menos um mingau de casa”, contou Cláudio.
Estrada para a comunidade makuken, no Uiramutã, Norte de Roraima
Josivan Antelo/Rede Amazônica
A comunidade também sofre com as estradas descritas como "péssimas". No auge das chuvas, "ninguém entra e ninguém sai", conta o tuxaua. Sem acesso, a chegada de assistência de saúde também é prejudicada.
“A água empoça, ficamos isolados. Todo ano é assim. Este ano a enchente foi forte. Parou tudo de novo”, relatou.
'A gente aprende a conviver com a água'
Indígenas usam quadricíclo para locomoção em vias alagadas, em Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
A comunidade Canapã fica do outro lado do rio Maú -- que divide o Brasil da Guiana. No lado guianense, os indígenas macuxi falam inglês, português e a língua nativa, mas é no lado brasileiro onde levam as crianças para estudar, trabalham e fazem compras. Ao todo, 264 indígenas vivem na comunidade.
E todos os anos, entre maio e setembro, a cheia do rio altera completamente a rotina deles e, por isso, ele se adaptam à realidade. Carros dão lugar à quadriciclos -- que conseguem transitar em rotas submersas com mais facilidade --, e até uma balsa realiza o transporte no valor de R$ 50 para atravessar o rio onde, de acordo com os indígenas, deveria haver uma ponte.
Balsa faz transportes entre os dois lados do rio Maú, onde deveria ter uma ponte
Caíque Rodrigues/g1 RR
O rio Maú ainda não atingiu a máxima prevista, mas os indígenas se preparam. É o que explica o segundo tuxaua da comunidade, Charles da Silva, de 31 anos.
“Quando o rio enche demais, a balsa já não é segura. A gente passa só de canoa, e isso é perigoso, principalmente para as crianças que estudam em Uiramutã”.
Atualmente, mais de 20 alunos da comunidade estudam do lado brasileiro e precisam fazer a travessia diariamente. O percurso pode custar até R$ 100 por dia (ida e volta), dependendo das condições do rio.
Charles da Silva, 31 anos, segundo tuxaua da comunidade Canapã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Canapã também é passagem obrigatória para pelo menos 24 comunidades indígenas da região, sendo sete delas menores e ainda mais vulneráveis. O transporte de mercadorias e a mobilidade entre essas localidades dependem de quadriciclos e motos.
“O chão vira só lama, as pontes ficam submersas e o acesso pela estrada desaparece. Ficamos totalmente comprometidos”, afirma o segundo tuxaua.
Apesar das dificuldades, a Canapã se adapta. A preparação para a cheia faz parte da cultura local. Quando percebem que o nível do rio começa a subir, os moradores se organizam, reforçam estruturas e buscam rotas alternativas.
“A gente aprende a conviver com a água. Não tem outro jeito. Mas isso não quer dizer que está tudo bem. A dificuldade existe, principalmente com transporte e saúde".
Período chuvoso
Carro entra dentro de rio para atravessar em via onde ponte foi destruída, no Uiramutã
Caíque Rodrigues/g1 RR
Roraima passa pelo período chuvoso que compreende o mês de maio até setembro. De acordo com o meteorologista da Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), Ramon Alves, o nível do rio Cotingo -- que passa pelo município e desagua nos outros rios e igarapés da região --atingiu 440 cm neste mês, considerado alto.
As chuvas foram fortes durante o mês mas, de acordo com Ramon, a tendência é diminuir.
“Lá vem chovendo bastante, sim. Mas agora a tendência é de diminuir as chuvas e, consequentemente, os rios também devem baixar”, explicou o meteorologista ao g1.
De acordo com o meteorologista, Roraima só tem uma única estação meteorológica automática, que fica em Boa Vista, logo não há como saber se Uiramutã choveu acima do esperado.
Por meio de nota, o Corpo de Bombeiros informou que está intensificando o monitoramento das áreas afetadas pelas chuvas em todo o Estado, com atenção especial ao município de Uiramutã.
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), responsável pela manutenção de rodovias federais, informou que acompanha regularmente a situação da BR-433. Disse ainda que não foi registrada nenhuma ponte danificada ao longo do trecho sob a administração desta autarquia. A manutenção preventiva da rodovia está programada para ser executada após o período chuvoso.
Já a Secretaria de Infraestrutura (Seinf) de Roraima, responsável pela manutenção das vias estaduais, informou que as operações de manutenção de pontes e estradas na região estão temporariamente suspensas em razão das severas condições climáticas do inverno.
Duas empresas contratadas pelo governo do estado, responsáveis pela execução dos serviços, permanecem na região com o maquinário necessário, aguardando a melhora do tempo para retomar os trabalhos.
O g1 procurou o Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Conselhor Indígena de Roraima (CIR), questionou se estão acompanhando a situação do município, mas não foi respondido até a última atualização dessa reportagem.
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