'Salário de CEO' e benefícios turbinados: as estratégias de empresas na disputa por talentos em IA no Brasil
27/11/2025
(Foto: Reprodução) Luís Henrique Martins não está procurando emprego, mas recebe mensagens de recrutadores praticamente todos os dias perguntando se ele tem interesse em trocar de empresa.
"São dezenas mensalmente, com excelentes oportunidades", comenta.
Ele é engenheiro de inteligência artificial (IA), uma das novas profissões ligadas à IA generativa.
Essa é a área da inteligência artificial focada na geração de conteúdo, que tem se popularizado desde o fim de 2022, quando a OpenAI lançou o ChatGPT. Em menos de três anos, a IA generativa passou a fazer parte da rotina de muita gente — o ChatGPT já soma 800 milhões de usuários — e de muitas empresas, que passaram usar essas ferramentas para automatizar e otimizar tarefas e reduzir custos.
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No Brasil, companhias de diferentes setores têm buscado incorporar a IA aos seus processos e produtos, mas encontrar mão de obra com experiência para fazer isso não tem sido fácil.
Em busca de talentos, muitas empresas têm oferecido salários significativamente maiores do que a média do mercado aos profissionais mais experientes, têm flexibilizado a obrigatoriedade do trabalho presencial e turbinado benefícios — chegando a oferecer em alguns casos parte da sociedade, como aconteceu com Martins na startup brasileira em que trabalha.
"Esse foi um outro atrativo que me ofereceram, uma fatia de empresa, o que me garante todos os benefícios da sociedade. Mas essas opções são mais raras", ele conta.
Recrutadores ouvidos pela BBC News Brasil disseram ainda que, no cenário atual, há oportunidades inclusive para quem tem menos tempo de carreira, já que, diante da falta de mão de obra, alguns empregadores estão dispostos a desenvolver talentos.
Procuram-se engenheiros de IA
Por ser muito nova e ter um campo de atuação amplo, a função de engenheiro ou engenheira de IA não tem uma definição estabelecida.
"É quase um time de profissionais em uma pessoa só", diz Martins.
"Geralmente, tem uma base forte na ciência de dados, incluindo estatística e modelagem, bom conhecimento de programação e entende de infraestrutura de software e de serviços de computação em nuvem."
São eles que integram as ferramentas dos modelos de IA disponíveis no mercado aos produtos e serviços das empresas, funcionando como uma espécie de elo entre a tecnologia e o negócio.
Exemplo: o engenheiro de IA pode criar um chatbot personalizado para atender clientes a partir do ChatGPT.
Ou usar a IA para ler planilhas de vendas e gerar relatórios de forma automatizada, para facilitar a análise do desempenho das atividades da empresa. Ou ainda programá-la para colher e processar dados das redes sociais e sites de avaliação para entender melhor a concorrência.
Os engenheiros de IA também podem estar mais focados em pesquisa e inovação, atuando na criação, treinamento e ajuste fino de modelos de inteligência artificial.
Nos Estados Unidos, onde estão as big techs por trás de plataformas como ChatGPT (OpenAI), Gemini (Google) e Claude (Anthropic), a briga por talentos com foco em pesquisa tem inflacionado os salários, levando alguns à casa dos milhões.
No Brasil, um país que é mais usuário do que desenvolvedor de tecnologias ligadas à IA generativa, as cifras não chegam a esse patamar — mas quem está no mercado relata demanda bastante aquecida.
Relatos como o de Martins, que é abordado constantemente por recrutadores, são comuns entre profissionais de tecnologia em plataformas como o Reddit: "Fiz cinco entrevistas nessas últimas três semanas e nem estou procurando nada. Para sênior é ridículo a quantidade de vagas", dizia um comentário recente em uma comunidade.
E também reflete a experiência de quem está do outro lado do balcão, como o recrutador Jonathan Yung, que há 20 anos trabalha buscando profissionais de tecnologia para cargos executivos e estratégicos em empresas no Brasil e no exterior.
"Está muito difícil achar engenheiro de IA. Primeiro, você aborda. Poucos respondem. Os que respondem já estão em mais uma ou outras duas vagas", diz ele, que é sócio-fundador da Vertico.
"Está todo mundo brigando pelos mesmos talentos."
Um dos efeitos dessa dinâmica se reflete na remuneração, em média maior para engenheiros de IA com experiência quando comparada, por exemplo, à de desenvolvedores de software, que já são conhecidos no setor pelo salário médio alto.
Yung diz que alguns chegam a ser contratados com salários compatíveis com as de posições mais altas dentro da empresa, como a de diretor-executivo (CEO).
"Você pode dizer que isso é uma bolha, correto. Mas as empresas estão dispostas a pagar", comenta.
Especialmente porque a competição por talentos não acontece só entre empresas brasileiras.
Yung também faz recrutamento para companhias americanas e diz que é comum que elas procurem profissionais no Brasil.
"Aqui o custo é menor, e o fuso horário é favorável [para trabalhar para empresas de países como os EUA]", pontua.
Essa tendência também tem chamado a atenção da recrutadora Vanessa Cobas, que trabalha há anos com profissionais de tecnologia e é parceira de negócios em RH da Ratto Software.
"Já é difícil encontrar esses profissionais com experiência. Quando a gente consegue achar, essas pessoas estão trabalhando para fora", ela ressalta.
Nesses casos, além do salário em dólar, geralmente maior que a média paga em reais no Brasil, o chamariz é trabalho remoto, hoje preferido por muita gente.
Na briga pelos talentos da IA, os incentivos não financeiros têm se tornado cada vez mais importantes, especialmente para empresas que não conseguem competir com a remuneração em dólar paga internacionalmente.
Yung conta que algumas das companhias com as quais trabalhou recentemente reduziram a exigência relacionada ao trabalho presencial, diminuindo os dias obrigatórios no escritório.
Outras apostaram na retórica do propósito — na área de saúde, por exemplo, a estratégia foi vender ao candidato a ideia de trabalhar em uma empresa nacional que ajudaria a salvar vidas.
No caso de Luís Henrique Martins, o trabalho remoto foi um dos principais atrativos — "Me permite uma qualidade de vida que não poderia nem considerar em qualquer outro regime" —, mas terem lhe oferecido uma fatia da empresa como sócio também contou na decisão.
Ele é engenheiro sênior de IA da Vox Radar, que usa inteligência artificial para monitorar redes sociais e tirar conclusões a partir do material coletado.
Martins diz que, das propostas de trabalho que recebe, uma em cada quatro é para "receber em dólar remotamente, e em ótimas empresas".
"Para o profissional que tem o inglês em dia, é definitivamente possível ganhar em dólar", ele pontua, fazendo a ressalva que essa é uma aposta com algum nível de risco, já que ser um estrangeiro trabalhando remotamente pode colocar o profissional em "posição frágil".
E alerta que, apesar do assédio, os processos seletivos por trás das vagas para engenheiros de IA são "longos, com cinco ou mais fases, o que requer muito estudo e dedicação".
A trajetória dele reforça a visão comum no setor de que não existe uma formação única que habilite um profissional a trabalhar com IA. Martins é apaixonado por programação desde a adolescência, mas não começou a carreira na computação — formou-se em História.
Aplicando visão computacional e processamento de linguagem natural (PLN) ao trabalho nas ciências humanas, ele acabou migrando para a área de ciência de dados e, a partir daí, passou a se aprofundar nos métodos de PLN e, depois, nos modelos generativos.
"A necessidade da empresa surgiu e eu assumi essa função."
Dois empregos e jornada das 7h às 20h
A demanda aquecida por profissionais qualificados não se restringe aos engenheiros de IA. Ela é ampla e engloba diferentes especializações entre os profissionais de tecnologia.
A recrutadora Vanessa Cobas levou seis meses até achar o candidato ideal para preencher uma vaga de desenvolvedor de software com foco em IA a pedido de uma empresa de comunicação.
O contratado foi Robson Júnior, que já estava empregado em regime CLT em uma multinacional brasileira e, depois de ser abordado pelo LinkedIn, de participar do processo seletivo e de receber uma oferta de contrato PJ, resolveu acumular os dois trabalhos.
Júnior tem 28 anos e é de Bangu, no Rio de Janeiro. Fez computação no Instituto Federal de Santa Catarina e trabalhou como suporte técnico de uma empresa de contabilidade tributária antes entrar, em 2023, para a área de inovação de uma multinacional que presta consultoria de software.
Foi lá que ele começou a trabalhar com inteligência artificial, produzindo ferramentas de IA para auxiliar desenvolvedores de outras empresas a criarem softwares.
Com o novo trabalho na empresa de comunicação — onde desenvolve soluções com inteligência artificial para gerar roteiros e áudios para podcasts —, ele hoje faz uma jornada de 7h às 20h, prestando serviço de forma remota para as duas empresas.
"É difícil, mas no fim é bom, porque eu consigo conciliar os dois. Essa é a realidade hoje no Brasil para os desenvolvedores, de carga de trabalho de mais de 12 horas, por conta das diferentes oportunidades que surgem o tempo inteiro", ele conta à BBC News Brasil.
'Salário mínimo' de R$ 7 mil e CLT
O déficit de mão de obra também acaba abrindo também oportunidades para quem não tem tanta experiência na área.
As empresas muitas vezes consideram contratar profissionais com menor qualificação e dar espaço para que eles se desenvolvam, pondera Mariangela Cifelli, recrutadora que atuou no setor de tecnologia no Brasil e hoje está nos Estados Unidos.
Ela ressalta que essa é uma dinâmica clássica dos ciclos do mercado de tecnologia: o surgimento de inovações adotadas em larga escala aumenta a demanda por determinados profissionais, inflaciona salários e acaba indiretamente beneficiando também funcionários com perfil mais "júnior".
"A gente precisa fazer escolhas. Ou vai pagar um salário bem alto para uma pessoa mais robusta ou vai dar oportunidade para quem tem interesse e a prática pessoal e desenvolver essa pessoa", concorda Vanessa Cobas.
O exercício de desenvolver talentos internamente é política de muitas empresas de tecnologia brasileiras e tem sido reforçada no ambiente da corrida pela IA.
No iFood, por exemplo, que tem 3 mil dos 8 mil funcionários alocados na área de tecnologia, muitos dos engenheiros e engenheiras de software têm migrado para a área de inteligência artificial incentivados pela empresa, que oferece treinamento, cursos e um orçamento específico destinado ao chamado "plano de desenvolvimento individual".
Hoje, 80% dessa verba está direcionada para capacitações em IA, diz Raphael Bozza, vice-presidente de pessoas, ressaltando que, desde 2018, o iFood tem buscado construir um time "forte e qualificado" nessa área.
A Cloudwalk, que atua no setor de pagamentos com a marca InfinitePay, é outra que cultiva o hábito de desenvolver talentos dentro de seus próprios quadros de funcionários.
"Muito do que a gente construiu aqui dentro foi com o conhecimento que a gente já tem", afirma Gabriel Bernal, que supervisiona um time de 140 pessoas da área de engenharia de suporte ao cliente, responsável por muitas das inovações relacionadas à IA implementadas na empresa recentemente.
Uma delas é um chatbot de suporte desenvolvido por ele "e dois meninos que nunca tinham mexido com programação" a partir do ChatGPT 3.5, com a ajuda de vídeos compartilhados por usuários em uma comunidade de profissionais de tecnologia do Discord e muita experimentação.
O exemplo ilustra bem a cultura do "aprender fazendo" praticada na empresa, razão que Bernal aponta para explicar a rotatividade baixa entre funcionários, apesar da competição por talentos no setor.
Ele menciona ainda como atrativos as oportunidades constantes de crescimento dentro da empresa e o salário de entrada, elevado a R$ 7 mil no início deste ano, chegando a R$ 10 mil com benefícios, com a contratação em regime CLT.
Questionado pela reportagem sobre a discussão em torno da possível rejeição dos jovens à CLT, que surgiu a partir de vídeos nas redes sociais em que adolescentes debocham do regime, Bernal diz que não observa esse desprezo na prática: "As pessoas que trabalham aqui gostam".
Profissão de 'engenheiro de IA' ainda não tem definição precisa, mas tem campo de atuação amplo
Getty Images via BBC